MPF x BOLSONARO: Comemoração do golpe de 1964 merece repúdio e configura improbidade

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota nesta terça-feira (26) informando que qualquer comemoração do Golpe Militar de 1964 merece “repúdio social e político” e pode configurar improbidade administrativa. Divulgada um dia após o governo Federal determinar ao Ministério da Defesa as “comemorações devidas sobre os 55 anos da Revolução Militar, em 31 de março”, a nota pareceu não incomodar o presidente.

A Defensoria pediu à Justiça para proibir as comemorações. Capitão reformado do Exército, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, já afirmou reiteradas vezes que na opinião dele não houve ditadura, mas, sim, um regime com autoridade no país. Já disse, também, que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador, é um herói.

“Festejar a ditadura é […] festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos. Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo das repercussões jurídicas”, diz a nota do MPF.

O golpe militar que depôs o então presidente João Goulart ocorreu em 31 de março de 1964. Com ele, iniciou-se no Brasil uma ditadura que durou 21 anos, até 1985. Durante este período não houve eleição direta para presidente, o Congresso Nacional chegou a ser fechado,
mandatos foram cassados, houve censura à imprensa e, segundo a Comissão da Verdade, mais de 400 pessoas foram assassinadas ou desapareceram.

Leia a nota da íntegra:

NOTA PÚBLICA

É incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais

A Presidência da República recomendou ao Ministério da Defesa que o aniversário de 55 anos do golpe de Estado de 1964 seja comemorado. Embora o verbo comemorar tenha como um significado possível o fato de se trazer à memória a lembrança de um acontecimento, inclusive para criticá-lo, manifestações anteriores do atual presidente da República indicam que o sentido da comemoração pretendida refere-se à ideia de festejar a derrubada do governo de João Goulart em 1º de abril de 1964 e a instauração de uma ditadura militar.

Em se confirmando essa interpretação, o ato se reveste de enorme gravidade constitucional, pois representa a defesa do desrespeito ao Estado Democrático de Direito. É preciso lembrar que, em 1964, vigorava a Constituição de 1946, a qual previa eleições diretas para presidente da República.

O mandato do então presidente João Goulart seguia seu curso normal, após a renúncia de Jânio Quadros e a decisão popular, via plebiscito, de não dar seguimento à experiência parlamentarista.

Ainda que sujeito a contestações e imerso em crises, não tão raras na dinâmica política brasileira e em outros Estados Democráticos de Direito, tratava-se de um governo legítimo constitucionalmente.

O golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, a conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como o crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto no artigo 5°, inciso XLIV, da Constituição de 1988. O apoio de um presidente da República ou altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). As alegadas motivações do golpe – de acirrada disputa narrativa – são absolutamente irrelevantes para justificar o movimento de derrubada inconstitucional de um governo democrático, em qualquer hipótese e contexto.

Não bastasse a derrubada inconstitucional, violenta e antidemocrática de um governo, o golpe de Estado de 1964 deu origem a um regime de restrição a direitos fundamentais e de repressão violenta e sistemática à dissidência política, a movimentos sociais e a diversos segmentos, tais como povos indígenas e camponeses.

Transcorridos 34 anos do fim da ditadura, diversas investigações e pesquisas sobre o período foram realizadas. A mais importante de todas foi a conduzida pela Comissão Nacional da Verdade – CNV, que funcionou no período de 2012 a 2014. A CNV foi instituída por lei e seu relatório representa a versão oficial do Estado brasileiro sobre os acontecimentos. Juridicamente, nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da CNV, dado o seu caráter oficial.

A CNV confirmou que o Estado ditatorial brasileiro praticou graves violações aos direitos humanos que se qualificam como crimes contra a humanidade. A igual conclusão chegou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso Vladimir Herzog, em 2018. Também a Procuradoria Geral da República assim entende, conforme manifestação na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 320 e outros procedimentos em trâmite no Supremo Tribunal Federal.

De fato, os órgãos de repressão da ditadura assassinaram ou desapareceram com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8 mil indígenas. Estima-se que entre 30 e 50 mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas. Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República.

A gravidade desses fatos é de clareza solar. Mais uma vez, é importante enfatizar que, se fossem cometidos atualmente, receberiam grave reprimenda judicial, inclusive por parte do Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma em 1998 e ratificado pelo Brasil em 2002. Também à luz do direito penal internacional, os ditadores brasileiros cometeram crimes contra a humanidade.

Essa Corte, porém, não pode julgar as autoridades brasileiras pelos crimes da ditadura, porque sua competência é para fatos posteriores à sua criação.

Festejar a ditadura é, portanto, festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos. Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo das repercussões jurídicas.

Aliás, utilizar a estrutura pública para defender e celebrar crimes constitucionais e internacionais atenta contra os mais básicos princípios da administração pública, o que pode caracterizar ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11 da Lei n° 8.429, de 1992.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC, órgão do Ministério Público Federal, confia que as Forças Armadas e demais autoridades militares e civis seguirão firmes no cumprimento de seu papéis constitucionais e com o compromisso de reforçar o Estado Democrático de Direito no Brasil, o que seria incompatível com a celebração de um golpe de Estado e de um regime marcado por gravíssimas violações aos direitos humanos.

 G1